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Por uma cota de notícias positivas

Publicado em 16/06/2021 às 17:22
Por uma cota de notícias positivas

*Roger Ferreira

Good News is no News. É dessa forma debochada que nós, jornalistas, tratamos fatos positivos que por acidente entram na pauta. De fato, o noticiário é uma fotografia horripilante da realidade. Mais de 60% dos programas de TV contém violência de acordo com o mais representativo estudo sobre a programação (National Television Violence Study, University of California, 1998).  A iniciativa Paz Na Mídia analisa desde 2013 os quatro principais telejornais (Jornal Nacional, Jornal da Record, Jornal da Band e Jornal do SBT), com mais de 170 mil notícias cadastradas, e identificou que 54% do tempo foi dedicado a assuntos negativos e 17% a cenas de violência. No total, 71% de negatividade, enquanto 18% foi dedicado a fatos positivos e 11% a relatos neutros.

A conclusão de quem consome o noticiário é que vivemos tempos sombrios. Mas essa percepção não tem amparo nos fatos. Pelo contrário, vivemos os melhores dias tanto em termos materiais como em relação a liberdades. Quem duvidar pode mergulhar nas centenas de indicadores organizados pelo site www.humanprogress.org, dos quais destacamos três: a expectativa de vida no mundo passou de 28,5 anos, em 1800, para 71,4 anos, em 2015; a extrema pobreza recuou de 94% para 10%; e viver em democracia passou de 1% para 56% no mesmo período.

Um estudo (Kaleev Letaru, 2019) pesquisou os sentimentos presentes em dois conjuntos de conteúdos: a Wikipedia, uma mostra de tudo o que é feito no mundo, e o noticiário em 130 países de língua inglesa. Enquanto os sentimentos na Wikipedia são crescentemente positivos desde o final da Segunda Guerra Mundial, o noticiário se torna cada vez mais negativo, em especial após o boom da internet. Há uma dissonância entre a realidade (cada vez melhor) e o noticiário (cada vez pior).

O problema é que a mídia não é neutra. Ela nos influencia profundamente. Desde a publicação do romance Werther, de Goethe, no século XIX, sabe-se que a exposição de suicídios na mídia incentiva pessoas a se matar. A ponto de a Organização Mundial de Saúde lançar a publicação “Prevenção do Suicídio: um Manual para Profissionais da Mídia”, em que sugere que casos de suicídio não sejam noticiados. Mas o suicídio é apenas um tipo de violência. Há centenas de estudos, com as mais diversas mostras e metodologias, provando que a violência mostrada na mídia gera comportamentos violentos. Sim, a mídia estimula a violência – mesmo quando fala que a combate. E faz mal para a mente. A literatura fala de efeitos como hostilidade, desprezo, dessensibilização emocional, percepção equivocada de risco e efeitos sobre ansiedade e humor.

E as consequências chegam à esfera social e política. O cenário mostrado na mídia leva à prostração ou ao radicalismo, pois se tudo está tão ruim a única solução é mudar tudo. É como se as más notícias preparassem o terreno as propostas radicais. Sim, a mídia cria condições para o sucesso de propostas autoritárias – mesmo fala que as combate.

Na disputa pela audiência e pela verba dos anunciantes, a mídia (jornalismo, redes sociais e entretenimento) mobiliza o viés negativo, um de nossos condicionamentos mais profundos. Os experimentos mostram que os fatos, palavras e imagens negativos têm mais efeito sobre nós do que os positivos. A negatividade é um ímã para a nossa atenção. E a mídia recorre a ela de forma crescente.

É preciso atuar nesse círculo vicioso. Tramita no Senado um projeto, fruto da Ideia Legislativa apresentada por Jonas Rafael Rossato, para proibir a exibição de programas policiais entre 6h e 22h (a exemplo da legislação de países como o Uruguai). E o Paz na Mídia apresentou outra Ideia Legislativa para criar uma cota temporária de notícias positivas. A cota acabaria com a corrida de jornalistas e veículos para fazer um noticiário mais negativo que o outro.

Como comparou o pesquisador Craig Andersen, assim como há 50 anos era necessário convencer que o cigarro causava câncer, agora precisamos evitar que a mídia violenta e negativa cause mais violência e problemas mentais, sociais e até políticos. E encontrar caminhos para as mudanças, seja na revisão de práticas profissionais, na legislação, na regulamentação, na autoregulamentação ou no consumo consciente, observando as melhores experiências internacionais.

Roger Ferreira, 55, é jornalista, Mestre em Ciências Políticas (FFLCH-USP) e ativista da iniciativa Paz na Mídia (www.paznamidia.com.br).

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