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Por uma dieta de mídia

Publicado em 16/08/2021 às 18:22
Por uma dieta de mídia

Emoções negativas nos ajudam a sobreviver e emoções positivas nos fazem evoluir

Roger Ferreira *

As pessoas preocupadas com o bem-estar cuidam da dieta alimentar, mas em geral não dedicam atenção à escolha do que consomem na mídia. Costumamos seguir nosso impulso em relação aos conteúdos que nos atraem a atenção sem refletir sobre as consequências para a nossa saúde mental e emocional. É um comportamento que deveríamos rever até mesmo porque passamos dois terços do nosso tempo acordados em contato com a mídia[1] e recebendo todo tipo de mensagem, que nos causam os mais variados efeitos[2].

As mensagens podem ser classificadas em conteúdos negativos (que mostram problemas) e positivos (fatos favoráveis ou bons). Cada tipo de conteúdo provoca sentimentos, raciocínios e reações diferentes. Ambos são necessários e importantes para o nosso bem-estar, mas devem estar bem balanceados para termos a vida mais plena possível.

A psicologia há muito tempo entendeu o mecanismo das emoções negativas, cujo sentimento comum é a aversão, traduzida como desgosto, medo, repulsa, tristeza, angústia, raiva, desespero, frustração, tédio e outros. Esses sentimentos funcionam como um alerta para mobilizar o indivíduo para combater o que está errado e constitui ameaça. O psicólogo Martin E. P. Seligman afirma que essa deve ser a razão de a seleção natural ter favorecido o crescimento das emoções negativas. Nossos ancestrais que sentiram fortes emoções negativas quando perceberam a vida em perigo provavelmente lutaram e escaparam da melhor maneira possível, passando adiante seus genes.[3]

De fato, existe o viés negativo, ou seja, a tendência a darmos mais atenção a fatos negativos do que aos positivos, mesmo vivendo em tempos em que a nossa sobrevivência não está permanentemente em perigo. Os experimentos mostram que os fatos, palavras e imagens negativos têm mais efeito sobre nós do que os positivos. A negatividade é um ímã para a nossa atenção. E a mídia, que vive numa competição crescente pelo público, recorre à negatividade de forma crescente. A iniciativa Paz na Mídia estuda desde 2013 os quatro principais telejornais do país e aferiu que 71% do tempo foi dedicado a assuntos negativos, sendo que 17% dessa fatia contém violência, e apenas 18% do tempo foi dedicado a conteúdos positivos.[4] Estudos internacionais mostram que a negatividade está em crescimento na mídia.[5]

Como vimos, as emoções negativas nos ajudam a sobreviver e a enfrentar os problemas mais urgentes. Elas foram especialmente úteis ao longo da maior parte da história humana, que é marcada pela luta para simplesmente permanecer vivo. Mas vivemos dias diferentes, em que a expectativa de vida no planeta cresceu de 28 para 71 anos e a extrema miséria foi reduzida de 90% para 10% nos últimos 200 anos[6]. A situação atual sugere que as emoções negativas podem estar sendo mobilizadas de forma exagerada. Já o outro conjunto de emoções, as positivas, foram amplamente menosprezadas pela ciência, que não via nelas nenhuma utilidade, e apenas no final do século 20 passaram a ser estudadas de maneira sistemática, com descobertas surpreendentes.

Os estudos comprovaram que as emoções positivas (tais como amor, alegria, felicidade, aceitação, bem-estar, diversão, entusiasmo, esperança, gratidão, humor, ânimo, satisfação, prazer) fortalecem nossos recursos intelectuais, físicos e sociais, propiciando uma disposição mental expansiva, tolerante e criativa. Existem evidências claras de que a emoção positiva funciona como um indicativo de saúde e longevidade. As pessoas felizes têm hábitos mais saudáveis, pressão sanguínea mais baixa e um sistema imunológico mais ativo. Pesquisas indicam que mais felicidade contribui para a produtividade e salários maiores. Adultos em estado de espírito positivo selecionam metas mais ambiciosas, têm um desempenho melhor e persistem por mais tempo em seus desafios. Daí resultam, por exemplo, grandes inovações.[7] Enquanto a negatividade nos faz focar energias em ameaças específicas, a positividade nos faz mais receptivos e criativos, permitindo desenvolver novas habilidades, conhecimentos e relações. A conclusão de uma importante meta-análise, síntese de mais de 300 estudos que testaram mais de 275 mil pessoas, é que a positividade produz bons resultados na vida das pessoas, seja na conquista de uma boa posição social ou financeira, na saúde ou num relacionamento satisfatório[8].

Em resumo, assim como os sentimentos negativos funcionam como um alarme para ameaças imediatas, os sentimentos positivos também sinalizam para oportunidades de interações que tragam benefícios sociais, intelectuais e físicos, além do bem-estar que proporcionam. A emoção negativa nos ajuda a sobreviver, e a emoção positiva nos faz desenvolver e transcender, indo além dos nossos limites. O desafio é navegar de forma adequada entre esses dois polos.

Para enfrentar essa questão a pesquisadora Barbara Fredrickson, pioneira nas pesquisas sobre o papel das emoções positivas, propõe a “Razão da Positividade”, que é a relação entre o tempo gasto com conteúdos positivos e o tempo gasto com negatividades. Em suas pesquisas ela constatou que há um ponto de mutação abaixo do qual as pessoas mergulham numa espiral de negatividade, com o comportamento previsível, irritadiço e sentindo-se sobrecarregadas e desamparadas. Já acima desse ponto de mutação as pessoas entram numa espiral de positividade, com seu comportamento menos previsível e mais criativo, com um sentimento de vitalidade e leveza.[9]

Não se trata de eliminar por completo o contato com as negatividades, pois elas fazem parte da vida humana e nos chamam a atenção para problemas que precisamos enfrentar. Mas elas não precisam mais ocupar o lugar central da nossa vida emocional, pois não vivemos mais os tempos sombrios da luta pela sobrevivência, e as condições objetivas das nossas vidas nos permitem almejar objetivos maiores. Ou seja, viver e evoluir, e não meramente sobreviver.

A prescrição da doutora Barbara é uma proporção de 3 para 1, ou seja, para cada experiência dolorosa para o coração deve-se experimentar pelo menos três experiências positivas com conteúdos bons e edificantes. É a proporção que, de acordo com as experiências realizadas, permite colocar o bem-estar das pessoas acima do ponto de mutação. Essa pode ser a fórmula que faz prever uma vida que floresça ou uma vida que definhe.

Todos esses avanços da psicologia têm estreita relação com a mídia. Há evidente exagero na proporção de conteúdos negativos e violentos[10] que acarretam efeitos nocivos. Em vez de nos mobilizar para enfrentar problemas, muitas vezes a mídia induz a sentimentos como prostração, desprezo, hostilidade, dessensibilização emocional, percepção equivocada de risco, ansiedade e mau humor[11]. Há centenas de estudos provando que a violência mostrada na mídia gera comportamentos violentos[12]. E as consequências chegam à esfera social e política, pois se tudo está tão ruim a única solução é mudar tudo. Ou seja, a mídia negativa contribui para gerar violência e para criar o ambiente no qual propostas autoritárias podem prosperar, além de nos trazer problemas mentais e emocionais.

É razoável estabelecer uma “dieta de mídia”, estabelecendo limites de tempo para o consumo do noticiário e procurando fontes que sejam mais equilibradas em seus relatos de notícias negativas (que devem ter abordagem propositiva) e positivas. O mesmo vale para as opções de entretenimento. Também devemos estar atentos aos conteúdos que consumimos e compartilhamos em redes sociais. Vale a pena ter em mente a importância das emoções positivas e lembrar a regra da doutora Barbara: buscar conteúdos positivos, na proporção de três para cada negativo, pode ser um bom caminho para uma vida mais feliz e próspera.

* Roger Ferreira, 55, é jornalista, Mestre em Ciências Políticas (FFLCH-USP) e ativista da iniciativa Paz na Mídia (www.paznamidia.com.br)

[1] https://www.emarketer.com/content/us-time-spent-with-media-2020#page-report

[2] A mídia nos influencia e promove mudanças de comportamento, como bem sabe a indústria da propaganda, especializada em criar conteúdos que aumentam o consumo de produtos e serviços. Além de promover o consumo, conteúdos podem promover boas reações e comportamentos, enquanto outros podem despertar reações negativas e até mesmo comportamentos agressivos.

[3] Felicidade Autêntica, Martin E.P. Seligman, Editora Objetiva, pág. 45

[4] https://www.paznamidia.com.br/ivm/

[5] www.forbes.com/sites/kalevleetaru/2019/05/14/sentiment-mining-500-years-of-history-is-the-world-really-darkening/?sh=1cda937035ef

[6] https://brasil.elpais.com/brasil/2018/01/23/actualidad/1516705169_487110.html

[7] Felicidade Autêntica, Martin E.P. Seligman, Editora Objetiva, págs. 45 a 59

[8] Positivity: Discover the Upward Spiral That Will Change Your Life, Barbara L. Fredrickson, 2009

[9] Positivity: Discover the Upward Spiral That Will Change Your Life, Barbara L. Fredrickson, 2009

[10] Mais de 60% dos programas de TV contêm violência de acordo com o mais representativo estudo sobre a programação (National Television Violence Study, University of California, 1998)

[11] Alguns estudos podem ser vistos em https://bit.ly/3s9BjE5

[12] Diversos estudos e metanálises podem ser vistos no link https://bit.ly/2VOlGWR

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